25 de out. de 2010

Você esta ouvindo?

Escutei recentemente que Hafiz um grande poeta da antiga Pérsia costumava contar uma lenda em que Deus fez uma estátua de argila, dando-lhe a forma segundo sua própria imagem. Em seguida queria que a alma entrasse nessa estátua para dar-lhe vida. Mas a alma não queria ser aprisionada, sabe como é. Pois isto não está na sua natureza, que é ser volátil e livre. Ela não queria ser amarrada e nem cercada de maneira alguma. O corpo é uma prisão e a alma não queria entrar nessa prisão. Então Deus pediu a seus anjos que fizessem música. E quando os anjos começaram a tocar a música, a alma se comoveu e, em êxtase, querendo sentir a música mais clara e mais intensamente, entrou finalmente no corpo.

O contorno do ser humano mortal é a pele. Esse nosso invólucro é o nosso maior meio de comunicação, é a nossa ponte para o mundo. Tatuamos-nos para passar idéias, nos vestimos conforme certa tendência ou até mesmo protestamos pelados. Tímida ou fervorosamente também emitimos e ouvimos sons. E o som o que é? Vibração. E sua recepção não repercute apenas no tímpano, mas em toda nossa superfície, é então uma operação corporal. Podemos dizer que toda voz e todo som são um tipo de massagem, uma estimulação tátil, uma massagem sutil.

Hoje em dia sabemos que as pessoas dão muito mais importância para as imagens do que para esses sons. O mundo esta cada vez mais veloz e apressado, afinal a visão não requer muito esforço. Pensamos mais rápido por imagens que por palavras. O fluxo de ouvir leva mais tempo, mas tudo que é visível morre mais rápido. A onipresença e onipotência da imagem nos compelem a um universo descartável. O ouvir exige reflexão, portanto exige tempo. Mas hoje em dia quem tem tempo? Devemos nos lembrar ainda que tempo não é dinheiro, tempo é vida. É muito mais importante do que dinheiro. Logo, hoje em dia, quem realmente vive?

A cultura do visual é: tempo é dinheiro, precisamos gerar imagem porque imagem gera dinheiro, a imagem faz vender. O tempo da imagem não é um tempo para pensar. O tempo da celeridade da imagem não é um tempo para estabelecer vínculos e nexos. Malditos sejamos nós publicitários, sabemos disso melhor do que ninguém e fortalecemos ainda mais essa lógica. Nos vendemos instantaneamente. Impulsivos, vivemos muito em pouco tempo, resumimos relacionamentos em semanas, colocamos uma história de marca em 30 segundos e toda sua filosofia num slogan curtinho.

Hoje respirei fundo e pisei no freio, resolvi pensar o mundo em câmera lenta e ouvir o que ele tem para me dizer. O ouvir nos permite gerar imagens, mas nossas próprias imagens, e essas são imagens geradas por nexos, sentidos e não são imagens oferecidas prontas de maneira a cercar a capacidade imaginativa. Imaginação vem de imagem. E esta geração de imagem é provavelmente mais fértil no tempo de ouvir do que no tempo do ver.

Que mulher nunca se intimidou com um fulminante olhar masculino? Poisé, nós homens temos predominantemente um sentido invasivo de olhar. Já a mulher é regida por um ato mais receptivo e passivo do ouvir. Essa passividade, que vem de passion que significa paixão, está associada a sensação e sentimento. Já o ativo masculino esta associado a agir a fazer. Claramente dois universos que se completam. Mas que hoje parecem estar em desequilíbrio. Estamos hipertrofiando a imagem e o olhar, quanto mais inflarmos a imagem, mais estaremos contribuindo para que o outro não nos veja mais, para que ele se torne cego ou insensível. Quanto mais nos tornamos visíveis, mais invisíveis estaremos nos tornando.


Felipe Castilho
São Paulo, 22 de junho de 2010.