15 de mar. de 2010

Sobrenome Lispector

Não existe silêncio mais belo do que uma folha em branco, uma tela sem tinta, um palco vazio. Clarice Lispector, falecida em dezembro de 1977, chegou ao paraíso celeste e logo recebeu uma missão: com sua literatura inata, escrever a parte invisível da personalidade de algumas pessoas ainda não nascidas.

Seu primeiro trabalho é um menino que quando viu seu espaço vazio pela primeira vez, ela se apaixonou e estufou o peito. Pegou sua caneta tinteiro e copiou nele o que de mais puro acreditava ter em si.

A primeira palavra que escreveu foi “sim”. E isso bastava para ele existir.
Quando ousou tentar compor a primeira linha, não soube o que fazer, então deixou em branco e passou para a próxima.

A verdade precisava estar inscrita no garoto, e isto se tornou o contato interior e inexplicável, entre todas as suas obras seguintes, (e não apenas um ingrediente dele). Só assim, estes seres-obra saberiam se reconhecer no mundo, quando um casal-obra se encontra descobre também a existência de sua arquiteta em comum.

Agora era preciso tornar seu menino exterior e explícito, para que quem o conhecesse pudesse absorver a sua história. Começou, não obviamente, por seus segredos. Ele recebeu um título, um destino, um mistério acima de tudo, mas não um ponto final. Sua história é feita de palavras que são agrupadas em frases e evolam um sentido secreto que ultrapassam as mesmas.

Pensando na forma como tudo isso é feito, a autora não se reteve. Caiu na tentação de escrever em termos suculentos, adjetivos esplendorosos, substantivos carnudos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação.

Sua poesia em corpo de personalidade havia então de transbordar no coração psíquico do menino. Ele tinha que ser urgente, suas alegrias intensas e suas tristezas absolutas. Por mais que ele tentasse se equilibrar nos estreitos, só poderia pisar com seus pés descalços nos extremos da vida. Seu talento será ler e escrever. Apenas isto.

A autora fez questão de programar seu menino para estar sempre verde, sempre vivo em sua infância, enfim, sempre menino, para nunca amadurecer plenamente e apodrecer. Ele há então, sempre de transgredir seus próprios limites, e o próprio alfabeto daqueles que o descrevem. Seu papel está mais do que claro: entender as pessoas e o mundo, e levá-los a um lugar melhor. Com a ajuda de seu anjo, conduzirá a realidade de todos até Xangri-lá, um lugar mítico onde sonhos e desejos podem se realizar.

Ele acreditará em mudança, e seu anjo se responsabiliza pelo crescimento de sempre. O menino só conhecerá o infinito, e buscará sempre inventar palavras para o que quiser transformar, jamais mentirá em seus textos - essa será a sua conexão com sua arquiteta. Fidelidade à literatura e às artes que o conectam com o mundo.

Sabendo apenas ler e escrever, tudo que ele tem gravado nele será colocado no papel. Se copiará em folhas em branco, em paisagens, se copiará nos outros, em música, se copiará todo ao seu redor. Ele sabe que com ele será diferente, jamais morrerá ao se distribuir no mundo. Sua palheta de tintas para se espalhar por aí vem de todos os lados, o planeta todo lhe será o mais variado arco-íris fresco. A vida lhe será colorida.

Com sua personalidade original não andará jamais ao acaso. Há de escrever seu próprio caminho, esse era o seu ato. Ele gostará de interpretar as pessoas de um jeito único e diferente, isso é um fato. Não andará ao acaso, mas se entregará ao tempo, bastando estar em paz viverá sempre no presente. A eternidade está registrada nele. No entanto, se dará mal com as repetições quando acontecerem, pois toda forma de rotina lhe rouba as possíveis novidades.

Assim como ele não doma o tempo, ninguém terá a fórmula de domá-lo. Há de ser impossível, imprevisível, intrigante, inatingível, raro, por fim: proibido.
Este menino não foi a única personalidade literária de Clarice. E ela escreve todas as almas de uma forma inacreditavelmente singular, mas igualmente todas têm o dom da palavra divina. Porém, ao tentar descrever o contato fascinante que há entre elas, jamais são capazes de fazê-lo. “A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade é irreconhecível.”

Como saber que eles escrevem bem, pois não acumulam palavras. O que fazem não é acumular e sim desnudar. E inspiram tanto medo com tamanha nudez, que é impossível não percebê-la como a palavra final.

Clarice Lispector faz questão também de marcar os momentos únicos que envolvem suas criações com alguns elementos mágicos. Os encontros belos são talhados pela chuva. E quando enfim, a faísca entre eles precede o beijo das almas, ela lança do paraíso à Terra algo que não é corpo, mas algo luminoso. O caminho que o objeto faz da arquiteta no céu até seus amados na terra, risca os ares, é uma estrela-cadente.

Sim.

Felipe Castilho
São Paulo, 10 de janeiro de 2010.




P.S. Ao dizer a seguinte frase, Fernando Pessoa foi convidado a se juntar à Clarice Lispector na composição literária de algumas almas: “Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens”.

Dedicatória:
Este texto é para você, que entendeu tudo o que estava escrito nas entrelinhas.

3 de mar. de 2010

O arquipélago precioso

No meu “eu” escultor
acenderam-se as chamas flamejantes
do criativo
que descobre seu bloco intacto de mármore virgem.

Conheci o meu maior desafio:
uma imperatriz,
aparentemente imune às minhas palavras.
E assim,
na minha melhor página em branco,
escrevo a nossa história sem dar um pio.

Somente com ações,
digo aos seus olhos verdes o que desejam sentir.
Para eles,
puros como os lagos
perdidos na natureza selvagem,
mostro a vida de um homem diferente.

Contudo, preciso concordar com a garota.
Nesse mundo globalizado de produções em massa,
os humanos se vestem iguaizinhos.
Eles dizem as mesmas coisas,
frequentam os mesmos lugares
e se divertem da mesma maneira.

É um imenso mar de igualdade
preenchido por um entediante cardume
que nada sempre no mesmo sentido.
Mas pergunto:
-Onde estão os peixes raros e
insubordináveis ao senso comum?
-Permanecem camuflados.

São nadadores irreverentes
misturados nesse oceano pacato,
buscando suas pérolas originais
para desenvolverem juntos
a linguagem dos seres exóticos.

Já somos exclusivos
e não tenho mais o que rogar aos ventos.
Só quero agora
uma profecia que se cumpra sem voz.

O caminho a ser trilhado
não é previsível,
foge aos oráculos
e lhe falta estrelas.

O primeiro passo do destino
foi o nosso encontro.
E então, logo veio uma conversa majestosa.
Mas as palavras apenas vagavam ao acaso,
nada precisava, de fato, ser dito.

Iniciamos uma união poderosa,
a conexão pura
que se transformou em beijo.
Junto brotava na epiderme o arrepio das almas.

Na pele nasceu a paixão,
filha da intensidade com o prazer.

Sentimento que surgiu analfabeto,
não por lhe faltar a língua,
mas por lhe faltar razão.

No ar eram tudo sensações.
O que sentimos estava ali presente
e não há como racionalizar ou descrever.

Com esses versos apenas arranho a taça de cristal
do que foi a nossa noite.
Não transmito o que passou,
viver não é relatável,
apenas crio sobre o passado sem mentir.
Dei corpo ao encanto que se instaurou em mim.

Esse sou eu,
também formado por um conjunto de amigos sem limites,
por um bando de gatos desgarrados,
intelectuais incompreendidos,
gigantes intombáveis,
aventureiros afiados,
e piromaníacos incontroláveis.

Sou esse todo.
Eu sou tudo,
menos o meu passado!

Não sinto falta de mim,
não caio no tédio.
Cada dia sou novo.

Não sou mais o que fui,
sou o que eu sei
sobre aquilo que eu era.

Cada dia sou criança e aprendiz,
sou jovem,
amante,
mortal.
Se eu parar; morro!
E morro de morte vivida,
pois sou inventor de meus dias
e invento vida mesmo na morte!

Convido-te a desfrutar meu infinito,
nem que seja só por hoje.



Felipe Castilho
São Paulo, 23 de fevereiro de 2010


"Grandes realizações são possíveis quando se da importância aos pequenos começos". Lao-Tsé

"Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida". Clarice Lispector