Não existe silêncio mais belo do que uma folha em branco, uma tela sem tinta, um palco vazio. Clarice Lispector, falecida em dezembro de 1977, chegou ao paraíso celeste e logo recebeu uma missão: com sua literatura inata, escrever a parte invisível da personalidade de algumas pessoas ainda não nascidas.
Seu primeiro trabalho é um menino que quando viu seu espaço vazio pela primeira vez, ela se apaixonou e estufou o peito. Pegou sua caneta tinteiro e copiou nele o que de mais puro acreditava ter em si.
A primeira palavra que escreveu foi “sim”. E isso bastava para ele existir.
Quando ousou tentar compor a primeira linha, não soube o que fazer, então deixou em branco e passou para a próxima.
A verdade precisava estar inscrita no garoto, e isto se tornou o contato interior e inexplicável, entre todas as suas obras seguintes, (e não apenas um ingrediente dele). Só assim, estes seres-obra saberiam se reconhecer no mundo, quando um casal-obra se encontra descobre também a existência de sua arquiteta em comum.
Agora era preciso tornar seu menino exterior e explícito, para que quem o conhecesse pudesse absorver a sua história. Começou, não obviamente, por seus segredos. Ele recebeu um título, um destino, um mistério acima de tudo, mas não um ponto final. Sua história é feita de palavras que são agrupadas em frases e evolam um sentido secreto que ultrapassam as mesmas.
Pensando na forma como tudo isso é feito, a autora não se reteve. Caiu na tentação de escrever em termos suculentos, adjetivos esplendorosos, substantivos carnudos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação.
Sua poesia em corpo de personalidade havia então de transbordar no coração psíquico do menino. Ele tinha que ser urgente, suas alegrias intensas e suas tristezas absolutas. Por mais que ele tentasse se equilibrar nos estreitos, só poderia pisar com seus pés descalços nos extremos da vida. Seu talento será ler e escrever. Apenas isto.
A autora fez questão de programar seu menino para estar sempre verde, sempre vivo em sua infância, enfim, sempre menino, para nunca amadurecer plenamente e apodrecer. Ele há então, sempre de transgredir seus próprios limites, e o próprio alfabeto daqueles que o descrevem. Seu papel está mais do que claro: entender as pessoas e o mundo, e levá-los a um lugar melhor. Com a ajuda de seu anjo, conduzirá a realidade de todos até Xangri-lá, um lugar mítico onde sonhos e desejos podem se realizar.
Ele acreditará em mudança, e seu anjo se responsabiliza pelo crescimento de sempre. O menino só conhecerá o infinito, e buscará sempre inventar palavras para o que quiser transformar, jamais mentirá em seus textos - essa será a sua conexão com sua arquiteta. Fidelidade à literatura e às artes que o conectam com o mundo.
Sabendo apenas ler e escrever, tudo que ele tem gravado nele será colocado no papel. Se copiará em folhas em branco, em paisagens, se copiará nos outros, em música, se copiará todo ao seu redor. Ele sabe que com ele será diferente, jamais morrerá ao se distribuir no mundo. Sua palheta de tintas para se espalhar por aí vem de todos os lados, o planeta todo lhe será o mais variado arco-íris fresco. A vida lhe será colorida.
Com sua personalidade original não andará jamais ao acaso. Há de escrever seu próprio caminho, esse era o seu ato. Ele gostará de interpretar as pessoas de um jeito único e diferente, isso é um fato. Não andará ao acaso, mas se entregará ao tempo, bastando estar em paz viverá sempre no presente. A eternidade está registrada nele. No entanto, se dará mal com as repetições quando acontecerem, pois toda forma de rotina lhe rouba as possíveis novidades.
Assim como ele não doma o tempo, ninguém terá a fórmula de domá-lo. Há de ser impossível, imprevisível, intrigante, inatingível, raro, por fim: proibido.
Este menino não foi a única personalidade literária de Clarice. E ela escreve todas as almas de uma forma inacreditavelmente singular, mas igualmente todas têm o dom da palavra divina. Porém, ao tentar descrever o contato fascinante que há entre elas, jamais são capazes de fazê-lo. “A verdade é sempre um contato interior inexplicável. A verdade é irreconhecível.”
Como saber que eles escrevem bem, pois não acumulam palavras. O que fazem não é acumular e sim desnudar. E inspiram tanto medo com tamanha nudez, que é impossível não percebê-la como a palavra final.
Clarice Lispector faz questão também de marcar os momentos únicos que envolvem suas criações com alguns elementos mágicos. Os encontros belos são talhados pela chuva. E quando enfim, a faísca entre eles precede o beijo das almas, ela lança do paraíso à Terra algo que não é corpo, mas algo luminoso. O caminho que o objeto faz da arquiteta no céu até seus amados na terra, risca os ares, é uma estrela-cadente.
Sim.
Felipe Castilho
São Paulo, 10 de janeiro de 2010.
P.S. Ao dizer a seguinte frase, Fernando Pessoa foi convidado a se juntar à Clarice Lispector na composição literária de algumas almas: “Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens”.
Dedicatória: Este texto é para você, que entendeu tudo o que estava escrito nas entrelinhas.
Um comentário:
Muito lindo o texto, Felipe. Essa sintonia desejada certamente veio a convite dEla. Embora você seja o autor da mágica!
Parabéns e que persiga o contato.
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